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Manifestantes exibem cartazes durante um protesto anticorrupção na Praça da Independência, em Kiev, em 22 de novembro de 2025. (Foto de Sergei SUPINSKY / AFP) Manifestantes exibem cartazes durante um protesto anticorrupção na Praça da Independência, em Kiev, em 22 de novembro de 2025. (Foto de Sergei SUPINSKY / AFP)  (AFP or licensors)

Corrupção na Ucrânia: legado soviético e incertezas sobre o futuro

O entrelaçamento entre os escândalos em Kiev e as discussões cada vez mais frequentes em torno da saída de Zelensky. Justiça e transparência, "pureza" e punição dos culpados parecem ser as prioridades a serem encontradas sob os escombros da guerra que se acumulam cada vez mais.

Pe. Stefano Caprio*

Nos últimos dias, o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy confirmou a decisão do Conselho de Segurança e Defesa Nacional, impondo sanções contra Timur Mindič, coproprietário do estúdio Kvartal-95 e estreito colaborador do próprio Zelenskyy, e contra o empresário Alexander Tsukerman, o outro proprietário. Ambos têm cidadadania israelense, onde atualmente se encontram, sem intenção de retornar a Kiev, e Mindič conseguiu deixar o país apenas algumas horas antes do escândalo vir à tona.

A operação denominada "Midas" - em memória do Rei Midas que transformava tudo em ouro -, provocou uma indignação em todo o mundo, precisamente no momento mais crítico da guerra da Rússia, contra a qual a Ucrânia luta para resistir e precisa cada vez mais do apoio de seus aliados ocidentais, que certamente não estão inclinados a renová-lo diante de escândalos de tamanhã dimensão.

O resultado da investigação de meses conduzida por agências anticorrupção é o culminar de disputas antigas sobre a divisão de poder com o presidente, eleito em 2019 precisamente para combater a corrupção, um flagelo herdado do sistema soviético e exacerbado pela transição contraditória para uma economia de mercado ao longo dos trinta anos sucessivos

A reação da população a esses eventos, que também envolvem vários ministros cujas renúncias estão sendo exigidas (até o momento apresentada pelo ministro da Justiça, German Galushchenko, e pela mnistra da Energia, Svetlana Hrynchuk, apresentaram), oscila entre raiva e a resignação, especialmente entre as gerações mais velhas, que associam o escândalo à chegada do inverno, quando tudo parece desmoronar e o país fica na escuridão e no frio devido aos ataques russos — "veremos se ainda estaremos vivos na primavera". Além disso, a corrupção se multiplica precisamente após operações militares, como se viu nos últimos anos na própria Rússia, onde quase todos os altos funcionários do Ministério da Defesa e do Exército foram substituídos por esses motivos.

Neste momento, o escândalo é acompanhado por discussões cada vez mais frequentes sobre a mudança de regime em Kiev, após possíveis eleições na sequência de um cessar-fogo, ou mesmo a renúncia do governo ou do próprio presidente, instigada pela Verkhovnaya Rada ou por protestos de rua. Isso desencadeou uma ampla gama de teorias da conspiração, que identificam três principais cenários possíveis para esses eventos: ação americana por meio do FBI, que permitiria a Donald Trump cortar a ajuda militar a Kiev e chegar a um acordo definitivo com Vladimir Putin; a interferência dos próprios russos, que finalmente se livrariam de Zelensky, um dos principais objetivos da invasão da Ucrânia; e, por fim, um plano do próprio presidente ucraniano, que, sacrificando alguns de seus homens mais leais, poderia renovar sua imagem como o "libertador" do país de inimigos externos e internos.

Para além das possíveis tramas ocultas, todas mais ou menos implausíveis, a investigação sobre Rei Midas impressiona pela vasta extensão da rede criminosa nos setores da energia e da defesa, com mais de 70 buscas que resultaram na apreensão de montanhas de dinheiro em dólares e euros, certamente não em hryvnia ucraniana, juntamente com gravações de áudio em que vários funcionários avaliam as percentagens a distribuir, usando pseudônimos relativamente fáceis de decifrar.

Mindič-Midas é chamado pelo codinome Carlson, eonseguiu atravessar a fronteira "com todos os documentos em ordem", embora não se saiba exatamente por qual posto fronteiriço ou aeroporto. Os principais subornos eram recolhidos pelos parceiros da Energoatom, representando entre 10% e 15% de cada negócio, e, de fato, a principal empresa de energia da Ucrânia não era gerida por diretores oficiais, mas sim por aqueles que controlavam os bastidores. O ex-conselheiro do Ministério da Energia, Igor Mironyuk, e várias outras figuras aparentemente de segundo escalão também são acusados, alguns deles ligados ao ex-deputado da Verkhovnaya Rada, Andrei Derkach, agora membro do Conselho da Federação em Moscou, o Senado russo, alimentando ainda mais as especulações de que o Kremlin estaria por trás do escândalo. Isso demonstra claramente como a Ucrânia, assim como a Rússia e quase todos os outros países da antiga União Soviética, permanece presa aos padrões da era Brejnev, quando, sob a sombra de secretários e diretores, eram sempre os escalões inferiores que decidiam os critérios para a distribuição dos fundos derivados da produção, depois habilmente inflado nos relatórios finais dos planos semestrais, anuais e quinquenais.

Derkač, mesmo tendo se transferido para Moscou, manteve seu escritório no centro de Kiev em nome de sua família, e de lá foram tramados os inúmeros esquemas de corrupção em toda a Ucrânia, a ponto de ser chamado de "quartel-general da contabilidade negra", onde o dinheiro era lavado com projeções em empresas de todos os tipos, nacionais e estrangeiras. O ex-deputado deixou de comparecer à Rada de Kiev imediatamente após a invasão russa de 2022 e estava sob investigação desde 2023, quando seu status parlamentar foi revogado. Desde o final do ano passado, tornou-se público que ele havia obtido uma cadeira no Senado de Moscou pela região russa de Astrakhan, no Mar Cáspio, enquanto seu nome aparecia em vários relatórios de propaganda de guerra antiucraniana na mídia.

Este típico expoente do mais obscuro "mundo russo" é filho de um oficial da KGB, Leonid Derkač, que no final da década de 1990 chefiou o serviço de segurança da Ucrânia, chegando a ser membro da Verkhovnaya Rada, falecendo de um ataque cardíaco duas semanas antes do início da invasão russa de 2022. O nome de Derkač-pai, também está ligado a algumas conversas gravadas entre o presidente Petro Poroshenko, antecessor de Zelensky e possível adversário presidencial, e o presidente dos EUA, Joe Biden, e outros políticos estrangeiros de alto escalão. Essas conversas foram usadas para desacreditar a Ucrânia no cenário internacional e impedir sua entrada na UE e na OTAN, precisamente as motivações que levaram ao Maidan de 2014 e ao rompimento das relações com Moscou.

Nestas investigações, portanto, se reflete toda a história recente da Ucrânia e das interferências da Rússia desde antes da guerra. A trama também apresenta outra protagonista, a filha de Andrei Derkač, uma jovem apresentadora de televisão ucraniana conhecida como Tatiana Terekhova, também ela repentinamente desaparecida após 24 de fevereiro de 2022 - provavelmente se mudou para o exterior com os filhos sem condenar as ações da Rússia, mas sem o marido, Ivan Litvin, filho de um político ucraniano que foi obrigado a ficar na Ucrânia devido à mobilização para a guerra defensiva. Posteriormente, surgiram relatos sobre um resort de luxo na região de  Žitomir  supostamente de propriedade de Litvin e onde a elite ucraniana estaria se refugiando, apesar da proibição de construção em terras agrícolas, alimentando ainda mais essa interminável novela da corrupção ucraniana.

A saga torna-se ainda mais dramática com o pedido para que Zelenskyy também remova o chefe do Gabinete Presidencial, Andriy Yermak, seu assessor mais próximo e de maior confiança, e o substitua por Oksana Markarova, a embaixadora nos EUA que tentou em vão defender o presidente ucraniano dos ataques verbais de Donald Trump em fevereiro. As suspeitas de envolvimento de Yermak no escândalo são sustentadas por indícios bastante fracos, mas a personalidade do assessor já era alvo de críticas há tempos, sendo acusado de poder e influência excessivos, a ponto de Zelenskyy não conseguir sobreviver sem ele. Atribui-se a Yermak a decisão desesperada de fechar agências anticorrupção nos últimos meses, numa tentativa de evitar a catástrofe atual, e resta saber até que ponto ele também é dispensável.

O próprio Zelensky reiterou que "qualquer ação que leve a resultados na luta contra a corrupção é absolutamente necessária", recordando os tempos de sua campanha eleitoral de seis anos atrás, como ator-testemunha do desejo do povo ucraniano de construir um futuro diferente, livre das amarras do passado. Justiça e transparência, "pureza" e punição dos culpados são as prioridades a serem encontradas sob o acúmulo contínuo de escombros da guerra, mas dependem da redescoberta de si mesmo e da verdadeira identidade do povo, mesmo antes de reconstruir o que será deixado para trás pelos jogos dos poderosos.

*Pe. Stefano Caprio é docente de Ciências Eclesiásticas no Pontifício Instituto Oriental, com especialização em Estudos Russos. Entre outros, é autor do livro "Lo Czar di vetro. La Russia di Putin". (Artigo publicado pela Agência AsiaNews)

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24 novembro 2025, 08:39