“Paz precária”: a atualidade da Centesimus annus de São João Paulo II
Jackson Erpen - Cidade do Vaticano
Com a invasão russa da Ucrânia, o mundo volta a mergulhar no pesadelo da guerra, com desdobramentos ainda imprevisíveis. Nesse interim, a importância de recordarmos a ação de alguns Pontífices ao longo de conflitos precedentes, a começar pelo Papa Bento XV, que governou a Igreja por sete anos e meio, quatro dos quais em meio aos horrores da I Guerra Mundial, que eclodiu em 1914.
Na sua primeira Encícilica, Ad beatissimi apostolorum, escreve que "todos os dias, a terra transborda de mais sangue, coberta de mortos e feridos". Já na Exortação Apostólica Ubi primum, de 8 de setembro de 1914, exortava "os responsáveis pelo destino dos povos a depor todos os seus dissídios em prol da sociedade humana”. Já com a data de 1º de agosto de 1917 é sua “Nota de Paz”, dirigida aos líderes dos povos em conflito. E de 1º de setembro de 1918, é sua Encíclica Quod iam diu, publicada em três semanas depois do armistício, onde pedia a todos os católicos que rezassem pela paz e por aqueles que se ocupavam com as negociações de paz, ressaltando que a verdadeira paz não tinha chegado, mas que somente foram suspensas as hostilidades e a devastação.
Já durante a II Guerra Mundial, o Papa reinante era Pio XII. Antes de seu início, dirigiu a radiomensagem “Un’ora grave” aos governantes e aos povos no iminente perigo de guerra”, onde exortava todos “a dirigir o olhar para o Alto e a pedir com preces fervorosas ao Senhor que a sua graça desça abundantemente sobre este mundo devastado, aplaque a ira, reconcilie os ânimos e faça resplandecer a aurora de um futuro mais sereno.”
Outro período de ameaça à paz mundial foi durante o Pontificado de João XXIII. Dele é a Carta Encíclica Pacem in Terris dirigida a todos os homens de boa-vontade: "A paz na terra, anseio profundo dos seres humanos de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus".
O “Papa bom”, como era chamado, também mediou a crise dos mísseis entre Cuba e Estados Unidos, em plena Guerra Fria. Em 22 de outubro de 1962, o presidente dos Estados Unidos John Kennedy havia alertado que um único míssil disparado de Cuba contra seu país desencadearia uma retaliação contra a União Soviética, enquanto anunciava o bloqueio naval a navios russos. Nikita Khrushchev - que liderou a União Soviética durante parte da Guerra Fria como secretário-geral do Partido Comunista de 1953 a 1964 e como presidente do Conselho de Ministros de 1958 a 1964 - afirmou que tal ação levaria à guerra.
O tema da paz aparece também na Encíclica de Paulo VI Populorum Progressio, na qual afirma que “Desenvolvimento é o novo nome da paz”.
Chegamos ao Papa polonês, João Paulo II, que tendo vivido os horrores da II Guerra Mundial e a opressão do regime comunista, foi incansável no trabalho pela paz e a reconciliação da humanidade. Mas sobre isso nos fala Felipe Sérgio Koller*, que tem nos trazido uma série de reflexões sobre a Encíclica Centesimus annus, que completou 30 anos em 2021:
“É verdade que, desde 1945, as armas silenciam no continente europeu; mas a verdadeira paz — deve-se lembrar — nunca é o resultado da vitória militar, mas implica a superação das causas da guerra e a autêntica reconciliação entre os povos”. Essas palavras de São João Paulo II na Encíclica Centesimus annus (n. 18), de 1991, mostram ao mesmo tempo a gravidade e a raiz dos conflitos envolvendo o ataque da Rússia à Ucrânia nos últimos dias. O Papa eslavo estava atento a esse bom sinal do “silêncio” das armas, mas sabia enxergar mais longe: a paz não pode simplesmente ser dada por conquistada.
Na encíclica, que estamos revisitando em uma série de contribuições aqui no Vatican News, João Paulo II chegava a dizer que a situação da Europa e do mundo era mais de “não guerra” do que de “paz verdadeira” (n. 18). A colonização cultural, as migrações forçadas, a instrumentalização de conflitos das periferias do mundo como fantoches e a corrida armamentista eram sinais de que a paz ainda estava longe, porque faltavam as condições para o seu enraizamento no coração dos homens e mulheres e da sociedade.
Aquela que se seguiu ao fim da II Guerra era uma “paz precária”, dizia o Papa, constituída mais pela ausência do conflito aberto do que pela presença de um empenho sólido em favor da comunhão entre os povos. Evitava-se a guerra, mas mais do que isso é necessário “rejeitar a lógica que a ela conduz”: para João Paulo II, “a ideia de que a luta pela destruição do adversário, a contradição e a própria guerra são fatores de progresso e avanço da história”. Já comentamos aqui como aquilo que a doutrina social da Igreja propõe é justamente um descer à raiz da realidade, colocando o nosso próprio coração à disposição de uma transformação.
Entra aqui a questão da cultura: a necessidade da formação de uma cultura da vida, como dizia João Paulo II, ou do encontro, nas palavras do Papa Francisco — ou, ainda, uma civilização do amor, expressão querida para São Paulo VI. A única solução real, portanto, não é um projeto que pode ser implementado em poucos anos, à força da lei ou das armas, mas algo que requer reconhecer que é mais importante iniciar processos do que ocupar espaços, como gosta de dizer o Papa Francisco: a cultura se tece lentamente, organicamente, artesanalmente, em meio a relações vivas entre rostos concretos.
“Para uma adequada formação de tal cultura, se requer a participação de todo o homem, que aí aplica a sua a criatividade, a sua inteligência, o seu conhecimento do mundo e dos homens. Aí investe ainda a sua capacidade de autodomínio, de sacrifício pessoal, de solidariedade e disponibilidade para promover o bem comum. Por isso, o primeiro e maior trabalho realiza-se no coração do homem, e o modo como ele se empenha em construir o seu futuro depende da concepção que tem de si mesmo e do seu destino”, ensinou São João Paulo II, ainda na Centesimus annus (n. 51).
Na primeira parte dessa série, conversamos justamente sobre o fato de que a doutrina social da Igreja se fundamenta numa visão da pessoa humana que recusa ao mesmo tempo o individualismo, isto é, a lógica da rivalidade entre nós, e o coletivismo, a lógica de uma massa à qual se consente a supressão do sujeito singular. A revelação cristã mostra o ser humano como ser constituído a partir das relações, em sua irrepetibilidade e riqueza próprias. Criado à imagem de Deus, o ser humano é chamado a cooperar com a obra da criação de si mesmo e do cosmo. “A Sagrada Escritura fala-nos continuamente do compromisso ativo a favor do irmão e apresenta-nos a exigência de uma corresponsabilidade que deve abraçar todos os homens” (n. 51), escreveu João Paulo II.
Essa fraternidade universal, tema da última Encíclica de Francisco — Fratelli tutti — é ainda mais perceptível no contexto atual. Fica claro que ninguém está isolado, e que um conflito numa parte do mundo atinge a todos nós. “Não é difícil afirmar que a terrível capacidade dos meios de destruição, acessíveis já às médias e pequenas potências, e a conexão cada vez mais estreita entre os povos de toda a terra, tornam muito difícil ou praticamente impossível limitar as consequências de um conflito” (n. 51), afirmou João Paulo II.
Por isso, por um lado cada cristão tem o dever de repetir com o Papa: “Nunca mais a guerra, que destrói a vida dos inocentes, que ensina a matar e igualmente perturba a vida dos assassinos, que deixa atrás de si um cortejo de rancores e de ódios, tornando mais difícil a justa solução dos próprios problemas que a provocaram!” (n. 51). A guerra é uma opção a ser sempre descartada, mesmo se reconhecemos que possa haver injustiças reais na base do seu desencadeamento. Por outro lado, então, o caminho é aquele apontado por São Paulo VI na Encíclica Populorum progressio, publicada 55 anos atrás: o outro nome da paz é o desenvolvimento.
João Paulo II explicava: apenas uma cultura marcada pela busca do bem comum, fundamentada em relações de comunhão, é capaz de afastar o fantasma da guerra. Há, por isso, uma necessidade coletiva de promover o desenvolvimento. A partir das potencialidades de cada pessoa e de cada nação, o trabalho deve promover o bem em todos os níveis, também economicamente. Mas para que isso aconteça, as pessoas e nações mais desfavorecidas devem ter acesso a condições realistas de desenvolvimento — ainda que isso exija o sacrifício de lucro e de poder por parte das pessoas e nações mais favorecidas. Em tudo, é a dignidade da pessoa que manifesta a sua primazia."
*Felipe Sérgio Koller, leigo, teólogo, Mestre e Doutor em Teologia pela PUC-PR, professor dos cursos de especialização da Faculdade São Basílio Magno, em Curitiba, e da Católica de Santa Catarina, em Joinville, co-fundador da Oficina de Nazaré (@oficina.de.nazare no Instagram), um projeto que fala da espiritualidade cristã nas redes sociais.
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